Acontecerá na próxima quarta-feira, dia 16 de janeiro, às sete horas da manhã no Centro Cirúrgico do Hospital das Clínicas, a milésima cirurgia de implante coclear realizada pelo Grupo de Implante Coclear do HCFMUSP. A paciente, uma senhora de 53 anos de idade, depois da ativação do aparelho reaprenderá a ouvir depois de __ anos sem escutar nada por causa de uma meningite.
“O nosso grupo tem muita história para contar. Chegar a mil cirurgias em menos de vinte e quatro anos de atividade. E tudo começou em 1989 quando quisemos introduzir essa terapia no nosso meio. Era um grupo composto por médicos, fonoaudiólogos, psicólogos, assistentes sociais e engenheiros porque precisamos desenvolver o nosso próprio implante para pode realizarmos a primeira cirurgia”, lembra Prof. Dr. Ricardo Ferreira Bento, o grande incentivador da ideia.
Em 1989, os programas usando tecnologia de ponta eram vistos com muita reserva pelos órgãos públicos e até pela classe médica. O custo alto era contestado em prejuízo de verbas que seriam destinadas a projetos básicos de saúde. “A importação de equipamentos com componentes eletrônicos e de informática era muito restrita e difícil. Até então poucos implantes importados realizados pelo Prof. Pedro Luiz Mangabeira Albernaz eram custeados através de projetos específicos de pesquisa ou realizados por pacientes particulares. Vários pacientes procuravam este recurso no exterior e tinham grandes dificuldades com a parte técnica de manutenção do aparelho e com a reabilitação foniátrica quando voltavam ao Brasil”, diz o médico. E, tentando resolver esse problema, o Prof. Dr. Ricardo Ferreira Bento concorreu com 400 projetos a uma verba do Banco Interamericano de Desenvolvimento e conseguiu o equivalente a US$ 100 mil, alocada somente para o intercâmbio de pesquisadores.
Os centros de pesquisas visitados pelas equipes envolvidas neste projeto multidisciplinar foram Duren, na Alemanha Ocidental, com o grupo do Prof. Banfai, Los Angeles, EUA, House Ear Institute e Salt Lake City, EUA, com o grupo de Prof. Parkins. “Recebemos também equipes de pesquisa da Universidade de Köln, Alemanha, composta por médicos, engenheiros, fonoaudiólogos e psicólogos para trabalhar em nossos laboratórios e trocar experiências na área e no desenvolvimento do projeto. Como resultado final, definimos a escolha pelo sistema monocanal, eletrodo extra ou intracoclear, processamento digital e acoplamento transcutâneo como o melhor sistema para dar início ao Programa de Implante Coclear no Brasil”, lembra o professor.
Descrédito inicial
Segundo Bento, a maioria dos professores de grandes universidades pelo mundo, inclusive a própria chefia da otorrinolaringologia, via com muita restrição o implante e não acreditava nos seus resultados e benefícios. “Eu tinha sido contratado recentemente pela FMUSP e acompanhava o implante e seus resultados através do mundo. Já havia realizado junto com o professor Jack Pulec de Los Angeles, o primeiro implante coclear do HCFMUSP, em 1986, durante o primeiro curso de implante coclear. Com o sucesso dessa cirurgia, convenci a chefia a estabelecer um grupo de estudos na área baseado na experiência obtida através das verbas recebidas no Projeto BID. Depois do projeto definido, não havia verbas para seguir com ele. Então, em 1990, conseguimos da FAPESP a verba necessária para inicia o desenvolvimento do projeto em si. E firmamos um convênio com a PHISICS, empresa mantida pela Fundação Zerbini do Instituto do Coração, para auxílio material e pessoal no desenvolvimento da fase inicial do projeto. Mas, para finalizá-lo, muitos recursos vieram da Fundação Zerbini e do CEDAO – Centro de Estudos e Desenvolvimento da ORL”, continua.
A proposta do programa era desenvolver e consolidar a tecnologia no Brasil que, no contexto científico e tecnológico é altamente desejável, pois representou a capacitação para suprir centros de pesquisas, hospitais e médicos para a reabilitação de doentes surdos totais. “Foi a possibilidade de uma integração de equipes de médicos, engenheiros eletrônicos, fonoaudiólogos, psicólogos e assistentes sociais, todos com um objetivo comum – o desenvolvimento de um aparelho nacional com a obtenção de um protótipo e produção de uma série piloto de dez unidades. É bom lembrar que os fabricantes dos equipamentos importados não possibilitavam o conhecimento técnico do aparelho e da regulagem de seu software, obrigando a utilização de pacotes já prontos, insuficientes para a consolidação da terapêutica como um todo”, diz.
Houve capacitação tecnológica para o desenvolvimento de microcircuitos com tecnologia SMD – Surface Mounted Devices – e sistemas portáteis baseado em microcontroladores de baixo consumo, com tecnologia CMOS que podem ser usados em outros processos de bioengenharia.
“Nessa época, eu era o coordenador e responsável pelo projeto, o Prof. Dr. Aroldo Miniti, co-coordenador do projeto, professor associado da ORL e chefe do Grupo de Otologia, o Dr. Adolfo Leiner era o diretor de Divisão do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (divisão de Bioengenharia), Milton Oshiro e Carlos Alberto Soares eram os engenheiros eletrônicos Helena Oyama era a engenheira química responsável pela confecção dos eletrodos e todos os componentes de silicone, aço, platina e ouro da divisão da bioengenharia, Vera Lúcia Fuess era a médica assistente da clínica de otorrinolaringologia, as Dras. Priscila Bogar e Tanit Ganz Sanches também pertenciam ao grupo. O pediatra era o Dr. Evandro Baldacci, o neuropediatra, Dr. José Luiz Guerpelli, as fonoaudiólogas eram Maria Isabel Machado de Campos e Maria Valéria Goffi-Gomez, a psicóloga era Heloísa Romeiro Nashala e a assistente social, Maria de Lourdes Satas Torres”, continua o médico.
A primeira cirurgia
Com essa equipe e com prévias cirurgias experimentais realizadas em cães no centro cirúrgico experimental do INCOR para testes de biocompatilidade de materiais e de transmissão, a equipe chegou ao primeiro protótipo denominado de FMUSP 1 e o paciente F.C.R.C. J, 34 anos, foi selecionado para ser implantado com o primeiro implante coclear totalmente produzido no Brasil e realizado no HCFMUSP. “A cirurgia aconteceu em 9 de março de 1994, sem nenhuma intercorrência e o paciente teve resposta consistente, o que animou muito a equipe. Ele era técnico em eletrônica e pode colaborar muito com os engenheiros quanto às sensações que sentia. Outros dez pacientes foram implantados com sucesso”, relembra o cirurgião.
Em 1996, o SUS começou a pagar os implantes, mas com muitas restrições – entre elas, uma absurda, a de que o hospital para ser credenciado para cirurgia de implante coclear deveria ser credenciado também para tratamento de pacientes com malformações crânio maxilo facial. “Nessa época, começou a ser facilitada a importação de implantes e as grandes casas internacionais começaram a atuar no Brasil. E, infelizmente, os recursos adquiridos pelas diversas instituições não foram suficientes para dar sequência ao projeto e competir com o grande investimento em pesquisa e tecnologia da Austrália, no projeto da Cochlear, da Áustria ao projeto da Medel e dos EUA ao projeto da Advanced Bionics. Mesmo com a interrupção da produção nacional, o projeto foi responsável pelo começo e consolidação do nosso grupo. E, principalmente, para compreendermos o funcionamento de um implante independente dos pacotes de hardware e software travados pelas companhias comerciais. A nível acadêmico foi um projeto de extrema importância e gerou vários trabalhos publicados em revistas de impacto e duas patentes – a do aparelho em si e da tecnologia de transmissão por infravermelho, inédita. E o Ministério da Saúde passou a sofrer pressão acadêmica para o problema do surdo e para que entendessem o tratamento”, continua o professor.
A primeira cirurgia de implante coclear multieletrodo e multicana realizada pelo grupo aconteceu em 1996. “Foi o Nucleus 22 e por causa das restrições a respeito do credenciamento do hospital, apenas quatro serviços no Brasil recebiam pacientes de todo o território nacional, o que dificultava a reabilitação pós-operatória e trazia custos enormes ao SUS com TFD – tratamento fora de domicílio – passagens e estadias dos pacientes”, diz Prof. Ricardo.
No ano seguinte, o Prof. Dr. Ricardo Ferreira Bento foi eleito presidente da Sociedade Brasileira de Otologia e começou um trabalho junto ao Ministério da Saúde fazendo a Campanha de Combate e Prevenção à Surdez, que chamou a atenção da imprensa ao problema e o levou a ser convidado pelo SUS a compor Comitês de Discussão de Normatização do implante coclear. “Em 99, o então Ministro da Saúde, José Serra, por iniciativa minha, publicou o Decreto de Criação do Programa Nacional de Saúde Auditiva que universalizou o tratamento de surdez, não só pelos implantes como também pelas próteses auditivas e terminava com a restrição de credenciamento somente aos hospitais que tratavam malformações crânio facial. Foi a universalização do implante coclear no Brasil, inclusive com o valor sendo pago extrateto estratégico, sem restrições de número de cirurgias como é atualmente. Aí o número de cirurgias deu um salto em nosso serviço”, continua.
Formação de outras equipes no Brasil todo
Até meados da última década, os planos de saúde/convênios não pagavam os implantes. Vários pacientes ganharam a cirurgia na Justiça e a ANS regulamentou obrigando os planos a pagarem os implantes integralmente.
“Nosso grupo participou ativamente do desenvolvimento do tratamento no Brasil, sendo fundamental para sua universalização. Fomos os responsáveis por formar outros centros e dezenas de serviços vieram estagiar conosco e fomos pessoalmente realizar as primeiras cirurgias para dar início a esses novos centros, cumprindo o papel de uma universidade pública – difundir conhecimento. Entre eles, estão o serviço da Universidade Federal do Paraná e IPO – Instituto Paranaense de ORL –, chefiado pelo Prof. Dr. Rogério Hammerschimidt, o serviço da Universidade do Rio de Janeiro, chefiado pelo Prof. Dr. Shiro Tomita, o serviço da Universidade Federal de Pernambuco, chefiado pelo Prof. Silvio da Silva Caldas Neto, o serviço de Montes Claros, MG, chefiado pelo Dr. Odilio Ribeiro Mendes, o serviço da Universidade do Pará, chefiado pelo Prof. Dr. José Cláudio Cordeiro, o serviço do Hospital Flávio Santos, em Teresina, chefiado pelo Dr. Flávio Santos, o serviço do ISMO em Pouso Alegre, MG, chefiado pela Dra. Sueli de Lima, o serviço do Hospital Otorrino de Cuiabá, MT, chefiado pelo Dr. Alonso Alves Cruz e o serviço Otorrino Center, em Salvador, BA, chefiado pelo Dr. Edson Bastos. Fomos os pioneiros no primeiro implante híbrido em 2006, nosso grupo fez o primeiro implante de tronco cerebral em adulto e, no ano seguinte, em criança. Em 2009, atingimos a marca de 500 implantes, com cerimônia no Auditório da Secretaria de Estado da Pessoa com Deficiência e a presença de muitos pacientes implantados, de equipes de todo o Brasil, de diversas autoridades públicas e da FMUSP”, diz o professor.
O Grupo de Implante Coclear do HCFMUSP iniciou já há alguns anos os implantes bilaterais e também os binaurais. E fizeram a primeira cirurgia de implante coclear pela fossa média para casos de otite crônica. “Na nossa contínua busca pela inovação e pesquisa, abrimos para o tratamento de pessoas com surdez e múltiplas deficiências como cegueira e surdez, paralisia cerebral, otite média crônica, malformações cocleares, casos nos quais a maioria dos grupos no mundo prefere não implantar. Temos modernos laboratórios de audiologia para pesquisa e vários trabalhos estão em constante andamento para colaborar no desenvolvimento do tratamento e novos produtos. 22 teses de mestrado e doutorado foram defendidas com o tema, 398 trabalhos foram apresentados em congressos nacionais e internacionais e 146 publicados em revistas nacionais e internacionais e centenas de artigos em jornais e revistas leigas, além de entrevistas em emissoras de televisão com o intuito de informar a população e sensibilizar as autoridades de saúde. Também criamos a Ouvir Bem, revista voltada ao público leigo, que desmistifica a cirurgia de implante coclear e informa a população sobre doenças de ouvido, garganta e laringe, distribuídas gratuitamente em consultórios médicos, escolas e unidades básicas de saúde. Centenas de participações de membros de nossa equipe em congressos nacionais e internacionais para conferências, painéis e mesas redondas. E mais de 50 cursos foram realizados no serviço nesse período que se iniciou em 1986, com o Curso sobre Implantes Cocleares, ministrado pelo Prof. Jack Pulec, em Los Angeles”, conta Prof. Dr. Ricardo Bento.
E finaliza: “Nosso serviço idealizou o Curso Multicêntrico de Implante Coclear que hoje é o mais importante curso de formação de equipes e existe constate formação de novos médicos e fonoaudiólogos nos estágios de aperfeiçoamento no serviço oferecido pelo Grupo. E comemoramos não só o número de implantes. Mas, principalmente, o conjunto de ações que levaram a difusão do implante coclear no Brasil e no mundo. Foram quase três décadas de ações que culminaram nesses mil implantes e que devemos a todos da equipe. Da equipe atual e a todos que por aqui passaram ao longo desses anos. Parabéns a todos e vamos em frente, em busca do implante 2000!”.
O Grupo de Implante Coclear do HCFMUSP é formado, atualmente, pelo Prof. Ricardo Ferreira Bento, coordenador da Equipe de Otologia, Dr. Robinson Koji Tsuji, coordenador do Grupo de Implantes Cocleares, Prof. Dr. Rubens Brito Neto, Dra. Mariana Hausen Pinna, Dra. Andrea Felice dos Santos, Dra. Anna Carolina Fonseca; neuropediatra, Profa. Dra Maria Joaquina Marques Dias, radiologista, Dra. Eloisa Gebrin, geneticista- Dra. Jeanne Oiticica de Ramalho, fonoaudiólogas – Dra. Maria Valeria Goffi Gomez, Ana Tereza de Matos Magalhães, Dra. Cristina Hoshino, Paola Samue, Bruna Lins, psicólogas Heloísa Nashala, Rosa Maria Rodrigues dos Santos Erica Fernanda Lavezzo Dias e a assistente social Leonor Palmeira.